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NOTÍCIAS

Notícias da área jurídica no Brasil, decisões, alterações de leis e demais novidades comentadas pelo Dr. Luiz Manoel Gomes Junior.

  • Foto do escritor: Luiz Manoel Gomes Junior Sociedade de Advogados
    Luiz Manoel Gomes Junior Sociedade de Advogados
  • 8 de dez. de 2021


Hoje vamos sair um pouco da Nova Lei de Improbidade Administrativa

e vamos falar sobre uma matéria que está evidência no STF que trata do critério do pagamento de desapropriação.


A primeira proposta do Ministro Luís Roberto Barroso, que permite que vá para precatório, quando o Poder Público desapropriante esteja em dia com os precatórios.


E a segunda proposta do Ministro Gilmar Mendes, que deixa como tudo está.


Nenhuma das propostas atende a Constituição. A Constituição não fala em precatório para pagar desapropriação.


O STF perderá uma grande oportunidade de colocar um limite: o Poder Público pode desapropriar quando tiver dinheiro para pagar.


Pode-se afirmar que, na perspectiva de constitucionalização do Direito Administrativo, não se pode admitir que o ressarcimento do proprietário nas ações de desapropriação por utilidade pública se dê pela via do precatório.


Confira mais detalhes no vídeo.

  • Foto do escritor: Luiz Manoel Gomes Junior Sociedade de Advogados
    Luiz Manoel Gomes Junior Sociedade de Advogados
  • 8 de dez. de 2021

Por Luiz Manoel Gomes Junior, Ana Lúcia Ribeiro Mól e Lorrane Queiroz


Em outubro de 2015, foi reconhecida a repercussão geral sobre a forma de pagamento das indenizações em ações de desapropriação por utilidade pública, nas hipóteses em que tenha havido depósito prévio insuficiente para fins de imissão provisória do ente público na posse no imóvel expropriado. O Tema nº 865 originou-se do RE nº 922.144/MG [1] e o início do julgamento virtual do recurso pelo Supremo Tribunal Federal, já com votos embasados em teses opostas, acende o debate sobre a questão e demanda a necessidade de se estabelecer uma leitura pós-moderna de princípios ínsitos ao direito administrativo, de modo a adequá-los às perspectivas do texto constitucional de 1988 e ao paradigma do Estado democrático de Direito.


Volvendo-se ao caso concreto, o recurso extraordinário em análise, de relatoria do ministro Luís Barroso, versa sobre ação de desapropriação proposta pelo município de Juiz de Fora (MG), com a finalidade de construção de hospital de urgência e emergência nos imóveis expropriados, sendo requerida sua imissão provisória na posse dos bens, mediante depósito prévio do valor da avaliação. Anos depois, após a conclusão do processo, apurou-se que o valor dos bens seria duas vezes maior do que o montante depositado, levando-se a questão se o pagamento dessa diferença deveria ou não seguir o regime dos precatórios, dada a previsão constitucional de que a indenização, nas desapropriações por utilidade pública, deve ocorrer de forma justa e prévia (artigo 5º, inciso XXIV, da Constituição).


No voto proferido pelo relator, o ministro Luís Barroso destaca que o sistema de pagamentos pela via dos precatórios não atende ao preceito constitucional posto em xeque, uma vez que os proprietários dos imóveis objeto de desapropriação, não obstante privados de usar, gozar e dispor dos bens por força da imissão provisória do Estado em sua posse, não recebem de imediato a indenização devida. Ao revés, aguardam por anos o adimplemento da diferença apurada entre o valor do depósito inicial e o valor da avaliação definitiva, inclusive porque, em grande parte das vezes, os precatórios sequer são quitados nos prazos previstos na Constituição.


Em função dessas circunstâncias, o relator do recurso propõe, para assegurar a aplicação do que estabelece o artigo 5º, inciso XXIV, do texto constitucional, que, nessas hipóteses, ao final da ação de desapropriação, o pagamento dessas diferenças havidas seja realizado por meio de depósito direto, salvo se a quitação dos precatórios pelo ente estatal estiver regular.


Em contraponto, o ministro Gilmar Mendes instaurou divergência, insistindo em seu voto que, por exigência constitucional estabelecida no artigo 100, o valor final do bem nas desapropriações por utilidade pública deve, sim, ser pago mediante precatório, descontado o montante do depósito prévio realizado por ocasião da imissão provisória na posse, uma vez que é essa a forma de pagamento estabelecida na Constituição em casos de sentenças proferidas contra o poder público que lhe imponham uma obrigação de pagar. Esclarece, basicamente, que tal exigência encontra-se reiterada na legislação infraconstitucional, em especial no artigo 15-B do Decreto-Lei nº 3.365/1941, estando em conformidade com as exigências impostas pelo sistema público orçamentário, que determinam a necessidade de que todas as despesas sejam previamente previstas e regulamentadas nas leis orçamentárias.


A tese proposta pelo ministro Gilmar Mendes não destoa da jurisprudência já consolidada no Supremo Tribunal Federal, que há tempos vem entendendo que a perda da posse do imóvel expropriado deve ser ressarcida ao antigo proprietário não apenas a partir do valor do bem, conforme apurado ao final do processo, mas também pela incidência dos juros compensatórios, devendo tais valores serem adimplidos pela via do precatório [2].


Contudo, esse entendimento jurisprudencial não mais encontra respaldo na perspectiva pós-moderna do Estado e de suas relações com os particulares. É de se ressaltar, a esse respeito, o especial enfoque que deve ser dado ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, base e fundamento principal da desapropriação de imóveis por utilidade pública, que vem sendo repensado dentro de uma estrutura que não mais coloca o Estado como o eixo de gravidade do sistema jurídico.


Sob essa perspectiva, o interesse público não se desponta como algo dissonante e autônomo em face dos interesses individuais. Estes, em última análise, são frações do próprio interesse público, que, por isso mesmo, não pode ser utilizado como pretexto para violação pura e simples de direitos e garantias fundamentais, mas antes deve ser o fundamento para estabelecer a sua efetiva proteção [3]. O interesse público não é, nem pode ser, utilizado como contraposição aos interesses dos cidadãos, como se necessariamente se tratasse de tese e antítese.


A ideia de verticalização despótica e autoritária da relação entre Estado e particular deve permanecer na era do absolutismo, sendo incompatível com a evolução estatal cunhada a partir da concretização do Estado de Direito, que estabeleceu ganhos sistêmicos na tutela das prerrogativas dos particulares, posteriormente potencializados pelo princípio democrático e por sua ínsita valorização da cidadania e da soberania popular [4].


Tais ganhos, que não permitem mais qualquer retrocesso, sobrelevam-se em importância ao serem incorporados na Constituição, que, atualmente, posiciona-se como norma fundante do ordenamento jurídico e estabelece a tônica da interpretação de todas as normas jurídicas, que devem ser aplicadas a partir da perspectiva que melhor se adeque ao texto constitucional.


Tomando como ponto de partida essas premissas, agora para a análise da desapropriação, é preciso considerar que tal instituto posiciona o Estado, de início, numa situação proeminente em face do particular, ao permitir uma intervenção estatal na propriedade privada, consubstanciada na transferência compulsória de certos imóveis para o patrimônio do ente estatal expropriante. Numa tentativa de reequilibrar essa relação, minorando os efeitos deletérios dessa circunstância, a Constituição exige que haja indenização justa, prévia e em dinheiro ao particular, quando se tratar de desapropriação por utilidade pública. Essa prerrogativa, aliás, é alçada à categoria de direito fundamental, estando elencado no já citado artigo 5º, inciso XXIV, do texto constitucional de 1985.


Não há dúvidas de que esse direito é assegurado quando, pela via administrativa, o poder público e o proprietário do imóvel chegam a um consenso quanto ao valor do bem e este é devidamente pago ao particular, em conclusão ao procedimento expropriatório. O questionamento surge nas hipóteses em que é preciso recorrer ao Judiciário para efetivar-se a transferência compulsória do imóvel ao Estado, especialmente quando se tem pedido de imissão provisória na posse.


É que, em tais situações, a lei exige que seja feito um depósito prévio do valor do bem, conforme avaliação efetivada de forma unilateral pela Administração Pública, que, em grande parte das vezes, não toma por base os valores praticados no mercado, ofertando-se um preço bem aquém daquele efetivamente devido. Apurado, ao final do processo, que o valor do imóvel é superior ao depósito prévio, o pagamento do montante remanescente pela via do precatório não apenas desconsidera o direito fundamental mencionado, mas também desequilibra ainda mais as partes envolvidas, posto que confere inúmeras vantagens ao Estado, em nítido detrimento do particular.


Em uma palavra, impõe-se, do modo mais claro possível, a visão absolutista da supremacia do interesse público.


Nesse contexto, o proprietário do bem, além de ficar privado das várias prerrogativas ínsitas ao direito de propriedade, não usufruirá, de imediato, da indenização correspondente a tal circunstância, mas deverá aguardar por anos o adequado pagamento do valor efetivamente devido. O Estado, de outra banda, já se utiliza do imóvel para a finalidade pretendida com a desapropriação e posterga, e muito, os gastos com o adimplemento de sua transferência para o patrimônio público.


Esclareça-se, desde já, que a questão orçamentária, levantada no voto do ministro Gilmar Mendes para defender a utilização do precatório nessas hipóteses, não obstante reconhecer-se sua importância no controle e alocação de receitas e despesas públicas, não pode ser posta como pretexto para se impingir ao particular despesas que já deveriam ser suportadas pelo poder público em período anterior, conforme determinação expressa da Constituição nesse sentido.


Aliás, a principal razão para não se aplicar o regime dos precatórios nas desapropriações por utilidade pública está justamente no fato de que o texto constitucional é categórico ao estabelecer a anterioridade da indenização ao proprietário. A previsão constitucional estabelecida no artigo 100 da Constituição não se aplica nas demandas expropriatórias simplesmente porque há norma específica no próprio texto constitucional estabelecendo um regramento diverso para tais processos.


Nessa esteira, pode-se dizer que as ações de desapropriação por utilidade pública configuram-se numa exceção à regra de pagamento das sentenças condenatórias contra o poder público por meio dos precatórios.


Ressalte-se, nesse ínterim, que a norma contida no artigo 15-B do Decreto-Lei nº 3.365/1941, determinando-se a observância do regime de precatórios nessa situação, cai por terra ante a disposição contida no inciso XXIV do artigo 5º da Constituição, haja vista a posição hierarquicamente superior das normas constitucionais. Nessa esteira, cabe à legislação infraconstitucional conformar-se ao texto constitucional, e não o contrário.


Em conclusão, pode-se afirmar que, na perspectiva de constitucionalização do Direito Administrativo, não se pode admitir que o ressarcimento do proprietário nas ações de desapropriação por utilidade pública se dê pela via do precatório. Tal entendimento, esposado no voto do ministro Luís Barroso no RE nº 922.144/MG, é o único capaz de harmonizar os interesses privados do particular com os interesses gerais da sociedade na utilização pública do imóvel expropriado, afastando as premissas já superadas de imunidade irrestrita de responsabilidade do Estado e de legitimação de seus privilégios a qualquer custo e a despeito dos direitos e garantias fundamentais.

[1] STF, RE nº 922.144/MG. relator ministro Luís Barroso. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4864567. Acesso em: 05 dez. 2021.

[2] STF, RE nº RE 176108/SP. relator ministro Carlos Velloso. Publicado aos 26 fev. 1999. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur110928/false. Acesso em: 05 dez. 2021.

[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 34. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2019.

[4] BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 239, p. 01-31, jan./mar. 2005.

[5] CARDOZO, Dimitri de Souza; DUARTE, Luciana Gaspar Melquíades. A indenização prévia no processo judicial de desapropriação por utilidade pública. Algumas premissas para superação do entendimento jurisprudencial hodierno. Direitos Fundamentais e Justiça, a. 08, nº 29, p. 47-65, out./dez. 2014.



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    Luiz Manoel Gomes Junior Sociedade de Advogados
  • 3 de dez. de 2021

Nos últimos dias 17 [1] e 29 [2], nesta mesma revista eletrônica, o caro Ricardo de Barros Leonel, professor associado do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), fez publicar inquietantes reflexões sobre de que maneira, em seu entender, a Lei nº 14.230/2021 passa a vigorar no ordenamento jurídico, imprimindo modificações no trato da improbidade administrativa no Brasil.


Seja porque as proposições do autor obscureceram pontos centrais a respeito da própria natureza da nova Lei de Improbidade Administrativa, seja porque os escritos deixaram de enfrentar obstáculos que sabidamente infirmariam as suas proposições, com o mais devido respeito, verifica-se que o produto final resultou em um enviesamento interpretativo in pejus e que desconsiderou elementos estruturantes da teoria dos direitos fundamentais.


Nada melhor que o debate, especialmente com regras novas e que impactam de forma profunda o sistema normativo.


1) É preciso compreender o alcance dos direitos e garantias fundamentais em temas de Direito Sancionador Segundo Barros Leonel, a garantia constitucional prevista pelo artigo 5º, inciso XL, "é uma garantia aplicável especificamente ao Direito Penal" que se reproduziria, se muito, no campo do Direito Administrativo disciplinar, sob aplicação da autoridade administrativa.

Como dissemos em publicação recente [3], mesmo a atuação do legislador, no sentido de estabelecer, de forma expressa, que ao sistema de improbidade se estenderiam os princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador (artigo 1º, §4º), seria incapaz de evitar que se fizesse uma leitura reducionista do texto constitucional.

Há, contudo, diversas razões que justificam a retroatividade da norma mais benéfica em termos de Direito Sancionador, em sentido amplo: a) a prioridade (ou relevância jurídica) a ser emprestada à tutela de determinado bem; b) a eliminação do risco de que dois indivíduos se vejam tratados pelo Estado-juiz de forma diversa, por razões de critério estritamente temporal; e c) o caráter de princípio geral de Direito da retroatividade da norma mais benéfica, não limitado à esfera penal.

Por muito que se apegasse a uma leitura juridicamente empobrecida da garantia prevista pelo artigo 5º, inciso XL, da CR/88, para circunscrevê-la aos apertados limites do Direito Penal, ainda não se poderia atribuir letra vazia às garantias de sentido análogo previstas por instrumentos internacionais dos quais o Brasil é signatário — e aqui não se está, nem de longe, tomando de empréstimo a experiência de outros países no tratamento do assunto, como sustenta o nosso interlocutor.

A rigor, a retroatividade da norma sancionadora mais benéfica constitui direito humano do cidadão, e, não sem razão, ocupa o rol de direitos civis e políticos da Convenção Americana de Direitos Humanos e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

Dessa forma, mesmo que se apequenasse, indevidamente, a amplitude da garantia prevista pelo artigo 5º, inciso XL, da Constituição, para circunscrevê-la às raias do Direito Penal, como sugere Ricardo de Barros Leonel, remanesceriam plenamente aplicáveis as garantias análogas previstas em compromissos internacionais que versem sobre direitos humanos, que são incorporados ao ordenamento jurídico interno, no mínimo, com status supralegal, como já decidiu o STF.


2) A realidade normativa nacional impõe tratamento adequado à regra sancionadora mais benéfica, segundo os predicados que lhes são conferidos pela própria Constituição A coerência de raciocínio nos leva a concluir que apartar da tutela jurídica da probidade o princípio da retroatividade da lei mais benéfica somente interessa a uma visão punitivista do papel do Estado, que, em sua essência, ignora que os direitos fundamentais deitam raízes exatamente no combate a esse tipo de incursão.

Para Barros Leonel, com quem dialogamos neste ensaio, "a correta exegese indica que a retroatividade da lei mais benéfica se circunscreve ao Direito Penal (artigo 5º, XL da CF). Não se aplica à tutela da probidade. O artigo 37, §4º, da CF não tem tal previsão". Trata-se, como é evidente, de uma interpretação estritamente literal da garantia constitucional.

A ideia de que o artigo 37, §4º, da Constituição, não preveria a retroatividade da lei mais benéfica e que, por isso, o disposto pelo artigo 5º, inciso XL, não se aplicaria à tutela da probidade, é um engodo. Não é possível estabelecer essa relação de causa e consequência que nosso interlocutor propõe, inclusive porque nisso se esvaziaria o caráter interpretativo do direito.

Para além, ainda que, mais uma vez, se afastasse do campo de incidência da probidade administrativa a garantia prevista pelo artigo 5º, inciso XL, da Constituição, restariam hígidas as garantias previstas por tratados e convenções internacionais que se debruçam sobre o tema, ponto por ele não enfrentado.

Consequentemente, se os ilícitos e as sanções decorrentes da improbidade são previstos por lei infraconstitucional, a existência da expressão "lei penal", no texto constitucional, não deverá ser determinante para afastar a retroatividade da lei mais benéfica nas ações de improbidade.

Significa dizer, uma vez que as garantias previstas em compromissos internacionais têm, no mínimo, status supralegal, não há dúvidas de que imporão elas os seus efeitos também sobre a tutela da probidade, abrigadas sob o conceito amplo de Direito Sancionador.

Por outro lado, a tese de que "a isonomia somente se verificaria em relação ao seu tempo de incidência e àqueles que, então, se submetiam a ela, (mas) não quanto à disciplina superveniente" desafia inconstitucionalidade.

Ricardo Barros Leonel, com a passagem acima, parece não compreender a mensagem implícita nas normas jurídicas "destipificadoras" e "despenalizadoras", que indicam a ressignificação que faz o Estado a respeito da premência da tutela em torno de determinados bens jurídicos. Ignora a clara e inequívoca vontade válida e constitucional do legislador.

Nas palavras de José Afonso da Silva, "se o Estado reconhece, pela lei nova, não mais necessária à defesa social a definição penal do fato, não seria justo nem jurídico alguém ser punido, e continuar executando a pena cominada em relação a alguém, só por haver praticado o fato anteriormente" [4].

Portanto, em termos mais simples, a ideia de que determinado bem jurídico seria relevante para o Estado, e, logo em seguida, deixa de sê-lo, viabilizando a punição do agente no primeiro caso, mas não no segundo, cria um contrassenso que desafia a coerência do Direito enquanto sistema.

Sendo o bem jurídico idêntico — no caso, a probidade administrativa —, não há mudança substancial senão quanto à percepção que o Estado tem em torno da conduta, não podendo o ato pretérito subsistir como injurídico.


3) O conteúdo declaratório da ação de improbidade é acidental e juridicamente indissociável do pleito condenatório Por suas reflexões, Ricardo de Barros Leonel nos leva a formular questionamentos sobre pontos interessantes. É o caso da afirmação de que "a atipicidade superveniente, na improbidade, não é razão para sentença de improcedência, mas, sim, para pronunciamento declaratório".

Afinal, há um conteúdo declaratório autônomo na ação de improbidade? A resposta é negativa e compreender adequadamente a Lei nº 14.230/2021 leva a que isso se confirme.

Em primeiro lugar, a rigor do preâmbulo da Lei de Improbidade Administrativa, tem-se que o diploma se presta a dispor "sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade". O escopo da norma é dispor sobre as sanções decorrentes da violação aos atos por ela tipificados; o reconhecimento da violação é um iter, não um fim em si mesmo.

Em segundo lugar, da leitura do disposto pelos artigos 9º, 10 e 11 da LIA não se extrai um conteúdo jurídico autônomo de cunho meramente declaratório.

Assim como ocorre em sentenças condenatórias em geral, o conteúdo declaratório é ínsito à imposição da sanção, de sorte que a imposição da sanção pressupõe o reconhecimento, isto é, a declaração de que a norma jurídica foi violada ("As sentenças constitutivas, como as condenatórias, encerram ainda uma declaração, isto é, a declaração do direito à mudança jurídica ou à prestação" [5]), mas isso não significa dizer que o conteúdo declaratório subsista por si mesmo.

Uma vez que decorre da própria atuação do Estado, na condição de Estado-legislador, a supressão de determinados tipos, ou a modificação ou extinção de determinadas sanções, não há sentido lógico, jurídico e muito menos econômico, que legitime o prosseguimento de um processo incapaz de cumprir o seu destino: o processo deixa de ser útil e o interesse de agir desaparece.

A autonomização do conteúdo declaratório da ação de improbidade, apenas para satisfazer os interesses subjetivos do Estado-acusador, não encontra amparo na lógica do Direito.

Tanto pior, a ideia de que a improcedência do pedido, ou a extinção do processo sem resolução do mérito, por força da entrada em vigor de lei mais benéfica, redundaria em um benefício ao agente, incorre em erro manifesto e faz pairar dúvidas sobre o estado de atipicidade que a norma vigente já cuidou de pacificar. Ladear esse fato é forçar a pretensão acusatória à custa da legalidade.

Vale aqui, ainda, apontar uma incoerência.

Sendo a LIA expressão do Direito Sancionador na tutela da probidade, o conteúdo declaratório autônomo nos tipos revogados ou nas sanções suprimidas, como propõe Barros Leonel, remove a Lei de Improbidade Administrativa desse âmbito (porque ausente, veja-se, a sanção), e a insere em um limbo jurídico.


4) Prescrição intercorrente (interfases) No mais, a prescrição é a perda da pretensão de reparação do direito violado, nos exatos termos do artigo 189 do Código Civil. Trata-se de fenômeno jurídico de direito material que opera em favor do réu/devedor, assim entendido, nas palavras de Flávio Tartuce [6].

Como a prescrição interessa prioritariamente ao Direito material, posto que fulmine a pretensão, a ela se estendem as garantias constitucionais ou supralegais que asseguram a retroatividade da lei mais benéfica, no âmbito do Direito Sancionador. Não há como consentir com a proposição do nosso interlocutor, para quem "o novo regime prescricional só pode ser aplicado para situações futuras, já sob a vigência da nova lei".

A propósito, a posição firmada pelo Ministério Público Federal em parecer emitido no STJ (REsp 1.966.002/SP) [7], também para fins de prescrição, se mostra correta.

A fixação de um critério claro para o cômputo da prescrição nas ações de improbidade administrativa, que nada tem de inconstitucional, se compatibiliza com o propósito de se superar uma realidade confortável para o Estado-acusador, na qual frutificaram distorções em que processos se prolongavam interminavelmente em primeiro grau, em flagrante prejuízo ao jurisdicionado.

Mas, além disso, o propósito de se estabelecerem marcos precisos na contagem da prescrição vai ao encontro da realização do direito previsto pelo inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição da República (razoável duração do processo), devolvendo ao titular da ação o dever de promover o seu andamento dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Estado.


5) Conclusões A interpretação da norma jurídica deambula sobre um núcleo duro, do qual não é dado ao intérprete se afastar, pena de deixar de se jogar o jogo do Direito, como sugeriu Hart em seu antológico "O Conceito de Direito" [8]. A textura aberta da regra tem seus limites.

Embora a nova Lei de Improbidade Administrativa seja desafiadora em sua aplicação, há premissas mínimas das quais não se deve abdicar. Criar distinções categoriais quando disso não se cuida, aparta do jogo do Direito o dever de se interpretar o sistema segundo sua integridade.

Uma interpretação que se pretenda consequencialista, estribada na redução dos preceitos constitucionais a uma leitura estritamente literal, empobrece o diálogo.

O consequencialismo como opção hermenêutica é argumento de política, que deixa de escanteio os direitos fundamentais do indivíduo.

A nova Lei de Improbidade Administrativa impõe, aos que pretendem interpretá-la, que o façam de modo a assegurar que os direitos fundamentais alcancem seu máximo potencial. Em contrapartida, a interpretação in pejus só se justifica se se consentir com o resgate de uma reminiscência punitivista.


Por fim, pertinente transcrever a sempre lúcida advertência de Carlos Maximiliano [9]: "Cumpre evitar, não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais este se apaixonou (...). A interpretação deve ser objetiva, desapaixonada, equilibrada, às vezes audaciosa, porém não revolucionária, aguda, mas sempre atenta respeitadora da lei".



[1] LEONEL, Ricardo de Barros. "Nova LIA: aspectos da retroatividade associada ao Direito Sancionador". Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-17/leonel-lia-retroatividade-associada-direito-sancionador. Acesso em 29 nov. 2021. [2] LEONEL, Ricardo de Barros. "Nova Lei de Improbidade: atipicidade, prescrição e direito superveniente". Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-29/leonel-lia-atipicidade-prescricao-direito-superveniente. Acesso em: 29 nov. 2021. [3] GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; RODRIGUES, João Paulo Souza; BORGES, Sabrina Nunes. "Caminhos para tratamento adequado aos processos em curso a partir da nova LIA". Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-16/opiniao-tratamento-aos-processos-curso-partir-lia. Acesso em: 30 nov. 2021. [4] SILVA, José Afonso da. "Comentário contextual à Constituição". São Paulo: Malheiros, 2009, p. 138. [5] LIEBMAN, Enrico Tullio. "Eficácia e autoridade da sentença". Tradução: Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 17. [6] TARTUCE, Flavio. “O novo CPC e o Direito Civil: impactos, diálogos e interações”. São Paulo: Método, 2015, p. 137-138. [7] MPF, Parecer no REsp 1.966.002/SP. Disponível em: http://apps.mpf.mp.br/aptusmpf/protected/download?modulo=0&sistema=portal&id=62099619. Acesso em: 30 nov. 2021. [8] HART, H. L. A. "O Conceito de Direito". Tradução: Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. [9] "Hermenêutica e Aplicação do Direito". Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 103.

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