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NOTÍCIAS

Notícias da área jurídica no Brasil, decisões, alterações de leis e demais novidades comentadas pelo Dr. Luiz Manoel Gomes Junior.

  • Foto do escritor: Luiz Manoel Gomes Junior Sociedade de Advogados
    Luiz Manoel Gomes Junior Sociedade de Advogados
  • 7 de jun. de 2022

A ação popular constitucional se insere no sistema processual coletivo como instrumento eficaz de fiscalização dos atos da Administração Pública cuja titularidade é conferida ao cidadão, como parte do projeto democrático de participação nas decisões concernentes ao Erário, tendo resistido a diversos modelos de Estado, ressalvado o período ditatorial de 1937, desde a sua introdução no ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição do Império de 18241 – apesar de possuir uma concepção diferente em relação ao modelo atual, ou seja, tinha natureza penal.


Com o objetivo de garantir e estimular o direito à dita participação, a lei de regência, qual seja, a Lei 4.717/1965 (LGL\1965\10), em seu art. 102, excepcionou o primado do adiantamento das despesas processuais, nomeadamente das custas e do preparo (artigos 82 e 1.007, do CPC/2015 (LGL\2015\1656)), o que foi potencializado pelo art. 5º, LXXIII, da Constituição da República de 19883. Pela regra da isenção das custas judiciais e do ônus da sucumbência conferida ao autor, afastada tão somente em caso de má-fé comprovada, o texto constitucional veio ressalvar o princípio da responsabilidade objetiva do vencido sobre os encargos da demanda, criando, entretanto, uma situação particular em favor do autor coletivo.


O presente artigo, para o qual se valeu do método dedutivo, tem o propósito de analisar como se dá a distribuição dos ônus da sucumbência e a aplicabilidade da isenção das custas na ação popular constitucional, com recurso subsidiário e supletivo do Código de Processo Civil. O estudo se justifica pela constatação de que a temática, embora de grande relevo pragmático para os operadores do direito, tem pouco aprofundamento na literatura.


Espera-se, portanto, com esta pesquisa, do tipo bibliográfica e de análise documental, traçar diretrizes sobre o modelo de imputação de despesas processuais (em sentido lato) nas diversas conformações decisórias, da isenção à incidência do chamado dano processual, apontando o tratamento punitivo gradativo conferido à má-fé dos litigantes e que seja capaz de contribuir não só para a Academia, mas, apoiada numa leitura constitucionalizada e participativa do provimento final na Ação Popular, para a construção de uma melhor prestação jurisdicional.


A divisão do trabalho é realizada em duas partes, a primeira reservada às definições, locus jurídico e diferenciação de cada uma das despesas que decorrem do processo, após breve exposição do desenvolvimento do regime de custas ao longo da história. Já a segunda parte propõe critério sistematizado para distribuição da sucumbência na ação popular, tendo por parâmetro a espécie de decisão judicial, com vistas, ao fim e ao cabo, a confirmar a hipótese de que a leitura rasa dos artigos 10, 12 e 13 da Lei de Ação Popular4, bem como do art. 5º, LXXIII, em sua parte final, da Constituição da República de 1988, pode levar a uma interpretação equivocada dos institutos, com possíveis prejuízos para o interesse coletivo difuso que se quer proteger.


Em resumo, a proposta do trabalho é sobretudo apontar diretrizes para a distribuição dos ônus da sucumbência em sede de Ação Popular, segundo o tipo de decisão que for prolatada.


2. Breve histórico do regime de custas e elementos conceituais


O estudo dos institutos jurídicos se remete ao básico, ao princípio. O que significa? Qual a sua origem e histórico? O que o diferencia dos demais? Qual a sua natureza jurídica? Não há como pensar em custas sem pensar em custo, em valor. Quem deverá ser responsabilizado por seu pagamento?


Na tentativa de responder a tais questionamentos, buscar-se-á neste capítulo, definir despesas, custas, taxa judiciária, multa processual, preparo, honorários advocatícios e ônus da sucumbência, traçando brevemente o processo histórico-evolutivo das custas, bem como sua destinação, para então adentrar nos critérios de distribuição da sucumbência e de isenção de despesas na Ação Popular.


Foi a partir do século XI que os glosadores, no Direito Romano, começaram a delinear um ainda incipiente estudo sobre custas. Antes disso, por certo pela simplicidade do direito e pela menor complexidade das relações jurídicas em relação aos dias atuais, além do modo como eram resolvidos os conflitos – justiça privada – não se falava em encargos da lide5.


No Direito Romano, quem suportava as despesas do processo eram os próprios litigantes. Cada qual depositava uma quantia e, no caso de sucumbência, aquela era revertida como um imposto aos sacerdotes ou ao Erário e não em favor do vencedor. A condenação do sucumbente no processo detinha natureza de pena, para punir o comportamento do sucumbente temerário (e do revel), ficando isento o vencido, desde que estivesse de boa-fé ou tivesse uma justa causa para litigar, ideia sobre a qual foi construída a doutrina processual sobre as custas.6


Não havia, porém, um parâmetro para a condenação nas despesas do processo, ficando ao arbítrio do juiz. Foi com Adolfo Weber, segundo Orlando Venâncio dos Santos Filho7, que se estabeleceu a regra segundo a qual a condenação do vencido deveria ficar circunscrita ao ressarcimento do prejuízo do vencedor, fundamentado na culpa aquiliana do Direito Romano.


Ressalta Antônio de Souza Prudente8 que a teoria dominante era de que deveria ser condenado aquele que litigava com dolo, o vicius victori, critério que seria abandonado com a Constituição de Zenão9, do ano de 487 d.C., marcando a passagem do sistema sancionatório para o sistema de condenação objetiva nas despesas do processo.

Consagrava-se, pois, o princípio da sucumbência, cuja ideia base, a natureza ressarcitória da condenação, sobrevive até os dias atuais. A punição ficava reservada para as hipóteses de lide temerária, que permitiam o acréscimo da décima parte das despesas à condenação. A quantia, no entanto, era recolhida ao Fisco, podendo ser revertida em favor do lesado para reparar o dano sofrido, se o juiz assim decidisse10.


Aqui é possível estabelecer um paralelo com o art. 13 da Lei de Ação Popular, que imputa ao autor popular o pagamento do décuplo das custas se a lide for reconhecida como temerária, afirmando-se suas raízes históricas no Direito Romano, tanto no que se refere ao caráter penalizador do litigante temerário, como no quantum da penalização.


No Brasil, pode-se delinear uma forte influência do Direito Português no tratamento das custas, já que as regras sobre pagamento foram primariamente previstas pelas Ordenações, nas quais era possível visualizar uma noção embrionária da figura do dano processual, qual seja, as custas por malícia, bem como a possibilidade de seu ressarcimento pela causalidade11.


Nas Ordenações (Livro 3º, Título 67), a parte vencida sempre seria condenada nas custas, ainda que tivesse razão para litigar. O quantum ficava a depender da malícia do litigante vencido. Se demandasse sem malícia, previa-se o pagamento de “custas singelas” e, de outro modo, as custas seriam pagas em dobro ou “em tredobro”12. Era possível, ainda, a prisão por custas, a qual só foi abolida pelo Decreto Imperial 5.737, de 2 de setembro de 1874.13


Segundo observou Paulo Rodolfo Moreira Neto14, mesmo com a dissociação das regras lusitanas, com o advento do Regulamento 737, de 1850, permanecia o disposto nas Ordenações, ressalvadas algumas normas, como a questão da prisão por falta de pagamento da despesa. As alterações substanciais viriam com os Códigos de Processo Civil Estaduais, como o da Bahia, do Distrito Federal, de São Paulo e de Pernambuco, regras que foram unificadas no Código de Processo Civil Nacional de 1939.

Mas afinal, o que é sucumbência e como está teorizada no campo das despesas processuais?


Os ônus da sucumbência dizem respeito ao encargo que deriva da perda da demanda, diretamente relacionado ao princípio da sucumbência adotado pelo CPC/2015 (LGL\2015\1656), no art. 82, § 2º. Englobam as despesas processuais (como gênero) e os honorários do advogado do vencedor, como dispõe o art. 85 do CPC (LGL\2015\1656)15.


Portanto, didaticamente, pode-se dizer que ônus da sucumbência = despesas/custas + honorários do advogado da parte vencedora.


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1 .O art. 157 da Constituição do Império de 1824 previa a possibilidade de qualquer do povo ajuizar ação popular contra ato de “suborno, peita, peculato e concussão” dirigida a ato de prevaricação dos juízes, julgada pelo Imperador, com alto teor moralizador, de caráter criminal, em que pese a utilização do termo “ação popular”. E apesar de o verbete ter sido utilizado expressamente no ordenamento jurídico brasileiro pela primeira vez naquela Constituição, antes mesmo, na vigência das Ordenações Filipinas, vislumbravam-se ações de iniciativa de qualquer do povo contra usurpação de coisas de uso público ou para embargar obra nociva a bem de uso comum como a rua, o mar, o rio público, como uma reminiscência do Direito Romano. (cf. SILVA, José Afonso da. Ação popular constitucional. Doutrina e processo. 2. ed. rev., ampl. E aum. 2. tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. p. 32-33).


2 .BRASIL. Lei 4.717, 29 de junho de 1965. Regula a ação popular. Presidência da República, Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em[www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4717.htm]. Acesso em: 28.03.2021.


3 .Art. 5º, LXXIII. “Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Presidência da República, Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: [www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm]. Acesso em: 28.03.2021).


4 .“Art. 10. As partes só pagarão custas e preparo a final.Art. 12. A sentença incluirá sempre, na condenação dos réus, o pagamento, ao autor, das custas e demais despesas, judiciais e extrajudiciais, diretamente relacionadas com a ação e comprovadas, bem como o dos honorários de advogado.

Art. 13. A sentença que, apreciando o fundamento de direito do pedido, julgar a lide manifestamente temerária, condenará o autor ao pagamento do décuplo das custas.”


5 .SANTOS FILHO, Orlando Venâncio dos. O ônus do pagamento dos honorários advocatícios e o princípio da causalidade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 35, n. 137, jan.-mar. 1998, p. 31-33. Disponível em: [www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/330/r137-04.pdf?sequence=4&isAllowed=y]. Acesso em: 11.04.2021.


6 .SANTOS FILHO, Orlando Venâncio dos. Op. cit., p. 31.


7 .SANTOS FILHO, Orlando Venâncio dos. Op. cit., p. 32.


8 .PRUDENTE, Antônio de Souza. Custas processuais. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 31, n. 123, jul.-set. 1994, p. 14. Disponível em: [www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496855]. Acesso em: 28.03.2021.


9 .Segundo o Manual histórico de direito romano, trata-se da Constituição do imperador Zenão, de novis operibus, que reinou antes de Justiniano, de 474 a 491 (SECCO, Antônio Luiz de Sousa Henriques. Manualhistorico de direito romano. Coimbra: Faculdade de Direito, 1848. Disponível em: [www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/7348.pdf]. Acesso em: 13.07.2021).


10 .SANTOS FILHO, Orlando Venâncio dos. Op. cit., p. 32.


11 .MOREIRA NETO, Paulo Rodolfo de Rangel. O sistema de responsabilização pelas despesas processuais no processo civil brasileiro e o princípio da causalidade. Orientador Alexandre Freire Pimentel. Dissertação (Mestrado), Universidade Católica de Pernambuco, Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas, 2010. p. 24.


12 .MOREIRA NETO, Paulo Rodolfo de Rangel. Op. cit., p. 23.


13 .BRASIL. Decreto 5.737, de 2 de setembro de 1874. Altera o Regimento das Custas Judiciárias. Coleção de Leis do Império do Brasil, 1874, v. 2, p. 903. Câmara dos Deputados. Disponível em: [www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-5737-2-setembro-1874-550668-publicacaooriginal-66703-pe.html]. Acesso em: 26.05.2021.


14 .MOREIRA NETO, Paulo Rodolfo de Rangel. Op. cit., p. 23.


15 .BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos, Portal da Legislação. Disponível em: [www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm]. Acesso em: 25.05.2021.


16 .SANTOS FILHO, Orlando Venâncio dos. Op. cit., p. 33.


17 .MOREIRA NETO, Paulo Rodolfo de Rangel. Op. cit., p. 30.


18 .SANTOS FILHO, Orlando Venâncio dos. Op. cit., p. 34. Ver também: CAHALI, Yussef Said Cahali. Honorários advocatícios. São Paulo: Ed. RT. 1997.


19 .SANTOS FILHO, Orlando Venâncio dos. Op. cit., p. 35.


20 .BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos, Portal da Legislação. Disponível em: [www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm]. Acesso em: 25.05.2021.


21 .Nem sempre os advogados foram remunerados por honorários no Brasil. Na regência das Ordenações, o advogado era considerado oficial do foro e exercia, assim, um munus público. Não lhe era permitido ajustar retribuição pelos seus serviços diretamente com os clientes – os honorários contratuais. A remuneração ficava por conta do valor dos emolumentos taxados no Regimento de Custas da época, o que só passou a ser permitido por meio do Decreto 5.737/1874 (BRASIL. Decreto 5.737, de 2 de setembro de 1874. Altera o Regimento das Custas Judiciárias. Câmara dos Deputados. Coleção de Leis do Império do Brasil, 1874, v. 2, p. 903. Disponível em: [www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-5737-2-setembro-1874-550668-publicacaooriginal-66703-pe.html]. Acesso em: 26.05.2021).


22 .Ver art. 85, caput, do CPC/2015, em comparação com o art. 20, primeira parte, do CPC/1973.


23 .PRUDENTE, Antônio de Souza. Op. cit., p. 17.



  • Foto do escritor: Luiz Manoel Gomes Junior Sociedade de Advogados
    Luiz Manoel Gomes Junior Sociedade de Advogados
  • 27 de mai. de 2022

Por Luiz Manoel Gomes Junior, Diogo de Araujo Lima e Rogerio Favreto


Dentre as estruturas clássicas de resolução de conflitos e técnicas alternativas de solução de disputas sociais, encontram-se a autotutela, a autocomposição e a heterocomposição.


A autotutela é considerada o meio mais primitivo de solução de conflitos. Por intermédio dela, resolvia-se a querela com as próprias mãos. Conforme Maurício Godinho Delgado, "a autotutela ocorre quando o próprio sujeito busca afirmar, unilateralmente, seu interesse, impondo-o (e impondo-se) à parte contestante e à própria comunidade que o cerca".[1] Exemplo clássico é o direito de greve, previsto no art. 9º da CRFB/88 e regulamentado pela Lei nº 7.783/1989.


Na autocomposição, por sua vez, a solução é construída pelas próprias partes envolvidas no litígio, com ou sem a intervenção de terceiros, mas, independentemente disso, sem o uso da força.


Já na heterocomposição, a decisão sobre o conflito é entregue a uma terceira pessoa, que estabelece, de forma imperativa, a solução do caso concreto. A heterocomposição pode ocorrer de duas formas: a arbitral, quando as partes escolhem um terceiro de sua confiança para decidir a causa; e a jurisdicional, quando uma das partes, valendo-se do direito de ação, provoca o Poder Judiciário, em busca de uma decisão imperativa, dotada de poder coercitivo e em caráter definitivo.


No caso da autocomposição, as partes estão autovinculadas às convenções pelo livre acordo de vontades, enquanto que na heterocomposição, juízes e árbitros estão adstritos ao ordenamento jurídico (heterovinculação), submetendo-se às normas jurídicas — sejam legisladas ou pactuadas (contratos e convenções).[2]


A partir dessas premissas, denota-se que o Acordo de Não Persecução Civil (ANPC) enquadra-se sob a forma de autocomposição. Por intermédio dele, em troca do não ajuizamento da demanda (se celebrado extrajudicialmente), ou da resolução do mérito da demanda (se já ajuizada), as partes negociam a aplicação de uma ou de algumas das sanções da Lei nº 8.429/92 (LIA), conforme a gravidade das condutas.


No modelo de consensualidade, um dos seus pressupostos é a solução negociada pelas próprias partes. Com efeito, o protagonismo processual, até então centralizado na figura do juiz, desloca-se para os atores envolvidos no conflito[3]. Quem define as sanções cabíveis (entre aquelas, por certo, com previsão constitucional e legal), a forma, o modo com que serão aplicadas e outros aspectos vinculados à operacionalização do acordo são as próprias partes, por meio de uma negociação regrada, a partir de normas constitucionais e infraconstitucionais.


O ajuste, porém, deve submeter-se ao controle judicial, que, sob a ótica de Fernando da Fonseca Gajardoni, pode se dar sob duas perspectivas distintas.[4] A primeira, de cariz mais formal, afere a regularidade da avença, perquirindo, por exemplo, se o agente é capaz, o objeto lícito, a forma prescrita ou não defesa em lei, se houve previsão de reparação de dano, enfim, se o negócio preenche os requisitos formais de validade. E a segunda, de caráter material, em que o magistrado controla o "próprio conteúdo da convenção, observando as diretrizes estabelecidas no artigo 17-B, § 2º, para homologar ou não o acordo [...]".[5]


Esta última linha reflexiva foi a encampada pelo STJ no último dia 9.3.2022, ao julgar os Embargos de Divergência em Agravo no REsp nº 102.585/RS, de relatoria do ministro Gurgel de Faria. Na oportunidade, a Corte homologou acordo firmado pelo MP-RS e uma pessoa jurídica prestadora de serviços de colegas de resíduos sólidos no município de Pelotas, que, entre outras sanções, havia sido proibida de contratar com o Poder Público pelo prazo de cinco anos. Pelo ajuste, a empresa assumiu o compromisso de pagar, em substituição à condenação de proibição de contratar com o Poder Público, uma multa civil de R$ 2,5 milhões.


No bojo do acórdão, especialmente do voto-vogal do minisro Herman Benjamin, veio à tona a questão do papel do Poder Judiciário frente aos acordos celebrados no curso das Ações de Improbidade. Concluiu-se, na oportunidade, que a melhor interpretação é a que submete ao controle judicial não apenas os requisitos formais, mas também o próprio conteúdo do acordo, a fim de verificar "se a avença atende as expectativas da coletividade à luz de particularidades subjetivas e objetivas da causa, bem como do princípio constitucional da razoável duração do processo, inclusive na fase satisfativa (artigos 5º, LXXVIII, da CF e 4º do CPC)". Para o vogal, a própria inteligência do artigo 17-B, § 2º, da LIA aponta "[...] no sentido de que o acordo (sic: o seu conteúdo) deverá considerar 'a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse público, da rápida solução do caso'".


O exame do atendimento ao interesse público autorizador da homologação da convenção considerou que: i) se tratava de ato na modalidade culposa de improbidade administrativa, de menor gravidade (artigo 10 da LIA); ii) o dano ao erário não foi de maior extensão; iii) a reparação está preservada, já tendo, inclusive, sido cumprida; iv) primariedade; v) a compromissária e sua subsidiária "prestam serviços essenciais de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos atendendo, diretamente, a cerca de 2,7 milhões de pessoas, nos estados de Santa Catarina e de São Paulo, possuindo, ainda, o único aterro sanitário hábil a receber resíduos sólidos urbanos provenientes do município de Florianópolis e sua região", de modo que a proibição de contratar com o Poder Público acarreta não só prejuízo a ela, mas também às municipalidades que são por si atendidas; vi) o valor da multa civil será revertido integralmente para obras de micro e macro drenagem em área elencada como obra prioritária no município de Pelotas, em virtude de cheias que ocorrem em períodos de chuva na região; e vii) a empresa de saneamento local, o Município de Pelotas, PGJ do MP-RS e o MPF aquiesceram com os termos do acordo.


O posicionamento parece refletir a melhor exegese sobre a matéria. É inegável que o Estado-Juiz não pode ficar alheio ao controle que lhe é pertinente, afinal, como leciona Fernando Gajardoni "[...] o Poder Judiciário não é um mero carimbador de acordo”,[6] do contrário, sequer haveria necessidade de homologação.


De fato, a ampliação dos espaços de consensos não pode ser confundida com uma discricionariedade absoluta por parte do Parquet. É fundamental que, por ocasião do exercício do juízo de conveniência e oportunidade que lhe cabe, o representante ministerial não perca de vista as diretrizes essenciais que justificam a consensualidade em matéria de improbidade administrativa: o atendimento às expectativas da coletividade e a defesa do patrimônio público. Acordos infundados e desarrazoados, decerto, comportam correção e podem ser objeto de intervenção do Poder Judiciário.


O exercício do controle judicial, contudo, exige prudência. O juiz, ao analisar a avença, não pode intervir na proposição do ajuste, tampouco substituir seu conteúdo. Não lhe é dado interferir no mérito do ato jurídico ou no conteúdo de suas cláusulas. O aprofundamento na análise dos requisitos formais e, de maneira excepcional, dos materiais do ANPC, se não exercido com cautela, pode eventualmente desvirtuar a natureza do ajuste enquanto negócio jurídico, repercutindo na liberdade e autonomia da vontade das partes, bases do modelo autocompositivo e da novel proposta de justiça negociada introduzida no Direito Sancionador brasileiro.


Partindo dessa premissa, em caso de divergência do juiz em relação aos termos do acordo, caber-lhe-á devolvê-lo às partes para adequação, nos moldes do artigo 28-A do CPP, aplicado por analogia, cujo §5º prescreve: "Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor".


Ao receber os autos para readequação da proposta de acordo, em respeito à independência funcional do membro do Ministério Público que o celebrou, fica-lhe assegurado avaliar as justificativas da não homologação judicial e tomar as "[...] providências adequadas ao caso concreto, promovendo a rediscussão do Acordo ou insurgindo-se contra a decisão, impugnando-a pelos meios cabíveis, de forma isolada ou conjunta com o celebrante". (artigo 56 da Orientação nº 10 do MPF)

Esse raciocínio, por certo, não exclui do escrutínio judicial aquelas situações de patente desproporcionalidade, cujo exame não escapa ao juízo homologatório, inclusive pelo prisma da legalidade (em sentido lato sensu).


De toda sorte, por igual, nessas hipóteses, o controle deve ficar adstrito aos casos manifestamente desproporcionais e teratológicos, sob pena de retornar ao vetusto modelo de solução de conflitos em matéria de improbidade administrativa e retroceder no significativo avanço que representou a Lei nº 14.230/21 em termos de regulamentação do ANPC.

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[1] DELGADO, Mauricio Godinho. Arbitragem, mediação e comissão de conciliação prévia no direito do trabalho brasileiro. Revista LTr, v. 66, n. 6, jun. 2002, São Paulo, p. 664.

[2] CAMBI, Eduardo; SOBREIRO NETO, Armando Antonio. Improbidade administrativa eleitoral: notas sobre o acordo de não persecução cível celebrado pelo Ministério Público. Artigo inédito. 2020.

[3] CABRAL, Rodrigo Ferreira Leite. Manual do acordo de não persecução penal. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 251.

[4] GAJARDONI, 2021, op.cit., p. 388.

[5] GAJARDONI, 2021, ibidem.

[6] GAJARDONI, Luiz Fernando et al. (orgs.). Comentários à Lei de Improbidade Administrativa. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 373.


  • Foto do escritor: Luiz Manoel Gomes Junior Sociedade de Advogados
    Luiz Manoel Gomes Junior Sociedade de Advogados
  • 19 de mai. de 2022

A finalidade deste estudo é prosseguir com um diálogo envolvendo a doutrina especializada em torno da Ação Coletiva Passiva. No primeiro texto por nós publicado sobre o mesmo tema (1), analisamos os requisitos, conceito e classificação, da mesma forma que foram apresentadas as principais indagações doutrinárias a respeito do tema. A própria existência do instituto é questionada e a discussão foi apresentada naquele trabalho.


Apontamos que parcela da doutrina chega a negar a existência da ação coletiva passiva (2), o que deixa ainda mais evidente que há problemas pendentes de solução. Concluímos que a ação coletiva passiva, ainda que ausente uma disciplina específica, existe sim no nosso sistema processual coletivo, como defendido por parcela considerável dos estudiosos (3).


No presente trabalho a proposta é analisar o tema da legitimidade, ativa e passiva, nas ações coletivas passivas e os seus principais problemas, propondo algumas soluções.


Como bem ponderado por Camilo Zufelato (4), não se desconhece que o nosso sistema processual coletivo foi pensado e concebido para admitir que um determinado grupo ou categoria ocupem o polo ativo de uma demanda, bastando uma simples análise da legislação de regência. No entanto, não se mostra raro que haja o ajuizamento de demanda contra determinado grupo ou coletividade, ainda que ausente uma previsão normativa específica, seja em termos de cabimento, procedibilidade ou pressupostos.


Ausente qualquer regulamentação precisa acerca da legitimidade passiva, ou mesmo da definição de grupo, coletividade, representatividade adequada. Nosso sistema processual tem grave lacuna, surgindo, portanto, destacada dificuldade em ser apontado quem deve ocupar o polo passivo deste tipo de demanda.


Desse modo, prosseguimos com o debate, posto que há ainda muitas dúvidas sobre a ação coletiva passiva. Em arremate, propomos agora o estudo do delicado tema da legitimidade, com foco na ação coletiva passiva.


Ação Coletiva Passiva e o seu conceito


Ainda a título de introdução, relevante para a análise do tema da legitimidade verificar o que é uma ação coletiva passiva, na linha já defendida anteriormente (5).


Segundo Thiago Oliveira Tozzi, (6) “a ação coletiva passiva, no direito brasileiro, como a aptidão atribuída a determinada entidade legitimada extraordinariamente para atuar defensivamente na tutela jurisdicional de direitos e interesses metaindividuais de grupo, classe ou categoria”.


Não podemos concordar com esse conceito, conforme já nos manifestamos. Com o devido respeito, o que caracteriza a ação coletiva não é o fato de que determinado legitimado possa atuar ou defender determinado direito coletivo, mas sim que nela haja a pretensão de questionar tal espécie de direito. Um requisito, ou elemento, não basta sem o outro.


Pertinente analisar o conceito de Aluísio Gonçalves de Castro Mendes (7) que inclusive procura simplificar e aclarar a sua caracterização:


“ações coletivas poderão ser classificadas como ativas ou passivas, de acordo com o lado em que se encontram os interesses ou direitos coletivos, ou seja, defendidos pelo autor ou pelo réu. Mas, poderá ocorrer que existam interesses coletivos em ambos os lados da demanda, caracterizando-se, assim, uma ação duplamente coletiva, o que historicamente é até frequente.”


Fredie Didier Junior e Hermes Zaneti Jr. entendem que “há ação coletiva passiva quando um agrupamento humano for colocado como sujeito passivo de uma relação jurídica afirmada na petição inicial. Formula-se demanda contra uma dada coletividade. Os direitos afirmados pelo autor da demanda coletiva podem ser individuais ou coletivos (lato sensu) – nessa última hipótese, há uma ação duplamente coletiva, pois os conflitos de interesses envolvem duas comunidades distintas.” (8)


Concordamos com Aluísio Mendes, Fredie Didier e Hermes Zaneti, até o momento em que afirmam ser possível caracterizar uma ação passiva como coletiva, mesmo em se tratando de direitos individuais, isso porque, o direito coletivo é requisito essencial para a caracterização de qualquer ação coletiva, seja ela ativa ou passiva.


De qualquer modo, temos que uma ação coletiva passiva é aquela ajuizada contra um determinado grupo (9), uma categoria ou uma classe, desde que organizados e ainda que sem personalidade jurídica, mas com representatividade adequada, visando questionar direito coletivo em sentido lato. Assim, aciona-se na ação coletiva um determinado grupo, visando questionar ou impugnar um direito de natureza coletiva, sendo a defesa feita por um representante considerado adequado (10-11).


1 GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo. Ações coletivas passivas: um diálogo com a doutrina – primeira parte. São Paulo, Revista de Processo, v. 287, 2019. p. 291-305.

2 . VITORELLI, Edilson. Ações coletivas passivas; por que elas não existem e nem deveriam existir? São Paulo, Revista dos Tribunais, 2018, RePro 278. p. 297-335.


3 . GIDI, Antonio . Rumo a um código de processo civil coletivo: a codificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 350 e ss. e MAIA, Diogo Campos Medina. Ação coletiva passiva. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2009. p. 53.


4 ZUFELATO, Camilo . O caso “rolezinho” como ação coletiva passiva e a intervenção da defensoria pública para garantir a representatividade adequada do grupo. São Paulo: Ed. RT, 2016.


5 GOMES JUNIOR, Luiz Manoel & CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo. Ações coletivas passivas: um diálogo com a doutrina – Primeira Parte. São Paulo, Revista de Processo, v. 287, 2019. p. 291-305.


6 . Ação Coletiva Passiva: conceito, características e classificação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, RePro 205. p. 267-296.


7 . A legitimação, a representatividade adequada e a certificação nos processos coletivos e as ações coletivas passivas. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, RePro 209. p. 243-264.


8 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 12. ed. v. 4. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 517.


9 Esse grupo, categoria ou classe, por sua vez, é titular, no campo material, do dever, da obrigação de fazer ou não fazer, de agir ou não agir de determinada forma.


10 . Curioso anotar que Jordão Violin (Ação coletiva passiva. Salvador: JusPudivm, 2008. p. 103) chega a afirmar que as primeiras ações coletivas da história seriam ações coletivas passivas: “[...]. Por volta do ano de 1199, o Pároco Martins, de Barkway, ajuizou ação na Corte Eclesiástica de Canterbury em face de paroquianos de Nuthampstead. A ação buscava reconhecer o direito dos religiosos ao recebimento de certas oferendas, além de declarar a desnecessidade de realização de missas diárias na Paróquia. [...]”. Tal exemplo é mencionado originariamente por Aluísio Gonçalves de Castro Mendes (Ações coletivas no direito comparado e nacional. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 43 e ss.).

11 Essa questão da representatividade adequada é posta, por Andre Vasconcelos Roque, como uma das dificuldades de ordem prática para a aceitação das ações coletivas passivas no nosso sistema jurídico. Isso porque, conforme o autor, não há “previsão expressa do controle judicial de representatividade adequada, condição indispensável para que se possa admitir a representação também pelo lado passivo sem comprometer o devido processo legal coletivo” (ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions – ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos aprender com eles? Editora JusPodivm: Salvador, 2013. p. 629).

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